Como
provar que Ezequiel 28 se refere também a Satanás e ao começo do conflito no
Céu?
Como um teólogo aspirante, escrevi meu primeiro trabalho de pesquisa a respeito
dos textos de Isaías 14 e Ezequiel 28 – passagens que os adventistas
tradicionalmente interpretam como sendo referentes a Satanás e à origem do mal
no Céu. Seguindo a pista de comentários da alta crítica, cheguei à
desconcertante conclusão de que essas passagens se referem nem a um nem a
outro. Consequentemente, senti que os adventistas não deveriam mais citar essas
supostas evidências bíblicas para sustentar sua compreensão acerca de como o
Grande Conflito começou.
Entretanto, estudos mais aprofundados revelaram
que, até o surgimento da crítica histórica à época do Iluminismo, os cristãos
em geral interpretavam Isaías 14 e Ezequiel 28 da mesma maneira que os
adventistas interpretam hoje. E, recentemente, encontrei evidências exegéticas
convincentes de que Isaías e Ezequiel estavam, de fato, se referindo a Satanás
nessas passagens.
Enquanto era estudante em nosso seminário, Jose
Bertoluci escreveu uma dissertação que compromete seriamente a visão crítica de
que os dois profetas descrevem apenas inimigos terrenos históricos de Israel.
Intitulado “O Filho da Alva e o Querubim Cobridor no contexto do conflito entre
o bem e o mal”[1], o artigo de Bertoluci mostra que cada passagem se transfere
do domínio local e histórico dos reis terrestres para o âmbito sobrenatural no
qual Lúcifer interpretou seu sedicioso papel. Descobri mais evidências que
suportam esse deslocamento conceitual em Ezequiel 28 – do “príncipe” terreno (nagid,
o rei de Tiro, versos 1-10) para o “rei” cósmico (melek, o soberano
sobrenatural de Tiro, o próprio Satanás, versos 11-19). Descobri também que
esse julgamento sobre o querubim caído ocorre no clímax do livro inteiro.[2]
Desse modo, a evidência bíblica suporta fortemente a exegese tradicional: o mal
teve sua origem em Lúcifer, o querubim cobridor.
Até alguns meses atrás, entretanto, um conceito
adventista muito familiar a respeito do advento do Grande Conflito parecia não
ter mais do que um suporte bíblico meramente inferencial. Refiro-me às
alegações de que, antes de sua queda, Satanás se pôs entre os anjos a difamar o
caráter e o governo de Deus. Nos livros Patriarcas e Profetas e O
Grande Conflito, em torno de 16 páginas tratam desse assunto, com base em
informações a respeito de Satanás tais como o fato de ele ter sido chamado
“homicida desde o princípio, [...] um mentiroso” (João 8:44, RSV) e “o acusador
de nossos irmãos” (Apocalipse 12:10, RSV). Mas existe alguma base bíblica mais
explícita para a acusação de “calúnia celestial”?
Acredito que sim. Por um feliz acaso, eu estava
examinando uma afirmação recente de que a maior parte da descrição de Satanás
em Ezequiel 28 seria apenas simbólica porque, como foi argumentado, ele é
descrito como sendo engajado em uma “abundância de [...] comércio” (verso 16,
NKJV) e, obviamente, Lúcifer não é literalmente um mercador celestial. Na
etimologia da palavra hebraica para “comércio”, fiz uma surpreendente e
empolgante descoberta. O verbo rakal, do qual esse substantivo deriva,
literalmente significa “andar por aí, de um para outro (para comércio ou
conversa fútil)”.[3] O substantivo derivado rakil – encontrado seis
vezes no Antigo Testamento, uma delas em Ezequiel 22:9 – significa “caluniador”
ou “mexeriqueiro”. O outro substantivo derivado, rkullah – que é o termo
usado para “comércio” em Ezequiel 28:16 – aparece somente nesse livro, e todas
as suas quatro ocorrências têm que ver com Tiro (26:12; 28:5; 16, 18).
A maior parte das versões modernas traduzem rkullah
como “tráfico”, “comércio” ou “mercadoria” – o que faz sentido, se aplicado
somente à Tiro histórica, uma cidade mercante, como contexto único da palavra.
Entretanto, em referência às representações do querubim cobridor em 28:16 e 18,
a noção de comércio não parece se aplicar tão bem. O notável crítico
exegeta Walther Eichrod comenta: “A descrição da transgressão é um pouco
inesperada, já que o comércio aqui é subitamente representado como sendo a
origem da iniquidade.”[4]
Uma resposta que acomoda ambas as interpretações,
“comércio” e “calúnia”, pode ser encontrada, creio eu, em um recurso literário
conhecido como “paranomasia” – um jogo com o significado da palavra. Já que o
substantivo rkullah é derivado do verbo que significa “andar por aí, de
um para outro, para fins de comércio ou de conversa fútil/difamação” – parece
provável que Ezequiel tenha escolhido esse raro termo hebraico (ao invés do
termo mais comum para comércio, sahar) justamente por causa de seu
possível duplo significado. A Tiro histórica claramente “andou por aí, de um
para outro” para fins de comércio com outras nações. De maneira semelhante, o
derradeiro governante de Tiro, Satanás (versos 11-19), no celeste “monte de
Deus”, também andou por aí, de um para outro – mas não para negociar, e sim para
espalhar calúnia e difamação entre os anjos. Ambos os governantes, o terrestre
e o espiritual, praticaram “tráfico”: o primeiro, de mercadorias; o segundo, de
calúnias contra Deus.[5]
O contexto imediato de Ezequiel 28:16 retrata a
queda do Querubim Cobridor da perfeição (verso 15) para o orgulho (verso 17).
Nesse cenário, os versos 16 e 18 traçam seus subsequentes passos para a
perdição. O verso 16 pode ser mais bem traduzido da seguinte maneira: “Na
multiplicação da tua difamação [rkullah], se encheu o teu [de Satanás]
interior de violência, e pecaste; pelo que te lançarei, profanado, fora do
monte de Deus...” Com hábeis pinceladas, Ezequiel pinta o retrato de Lúcifer
difamando a Deus, um primeiro passo em direção à definitiva rebelião aberta e
violenta descrita tão bem por João como “guerra no Céu” (Apocalipse 12:7, NIV).
Ezequiel 28:18 revela que, após sua expulsão do Céu, o querubim caído continua
a sua “iniquidade de difamação [rkullah]” contra Deus. O versículo
também registra a sentença divina contra Satanás: destruição pelo fogo por
causa da “multidão de suas iniquidades”.
A sediciosa difamação celestial de Satanás contra
Deus nos primeiros momentos do Grande Conflito não é uma adição adventista
extrabíblica à história; é, na verdade, uma admirável verdade bíblica!
(Richard M. Davidson é professor de Antigo
Testamento na Universidade Andrews, nos EUA)
Referências:
1. Jose M. Bertoluci, “The Son of the Morning and the
Guardian Cherub in the Context of the Controversy Between Good and Evil”, dissertação
de Th.D., Andrews University Seventh-Day Adventist Theological Seminary, 1985
(disponível a partir de University Microfilms, University of Michigan, P.O. Box
1346, Ann Arbor, MI 48106-1346).
2. Richard M.
Davidson, “Revelation/Inspiration in the Old Testament”, Issues in
Revelation and Inspiration, Adventist Theological Society Occasional
Papers, v. 1, Frank Holbrook e Leo Van Dolson, eds. (Berrien Springs, Mich.:
Adventist Theological Society Publications, 1992), p. 118, 119.
3. Francis
Brown, S. R. Driver e Charles A. Briggs, eds., The New Brown, Driver and
Briggs Hebrew and English Lexicon of the Old Testament (Grand Rapids,
Mich.; Baker Book House, 1981), p. 940.
4. Walter
Eichrodt, Ezekiel: A Commentary, Old Testament Library (Philadelphia: Westminster
Press, 1970), p. 394.
5. Apocalipse 18 parece capturar esse nuance dúbio
utilizado por Ezequiel. Em uma passagem claramente alusória a Ezequiel 28, o
anjo fala sobre a “mercadoria” de várias coisas materiais nos versos 12 e 13,
mas a listagem termina transferindo-se para o âmbito espiritual: “mercadorias
de [...] almas humanas” (KJV).